quinta-feira, 7 de junho de 2012

João Querido Manha diz que Scolari é muito esperto e um manipulador de consciências




Muitos portugueses ficaram chocados com as revelações de Scolari sobre a responsabilidade do afastamento de Vítor Baía da Selecção Nacional em 2003. 


Alguns foram mesmo levados a assumir que o Sargentão, orador convidado em workshops sobre a arte da liderança, não passara afinal de mais um aríete do sistema a baixar-se às conveniências de uma determinada corrente dominante. 

Os factos relatados, porém, não encerravam grande surpresa. De posse de informações sobre a relação do jogador com a Selecção, inatacável desportivamente mas com alguns pontos de fricção, como a recusa ao Mundial de juniores, a perturbação do Euro'96 ou tomada de lugar na Coreia, e também da promiscuidade de alguns dirigentes de clubes em plenos estágios e viagens da equipa nacional, o treinador brasileiro viu duas soluções na mesma medida: abrir uma frente de conflito capaz de delimitar espaços e despertar apoios, ao mesmo tempo que tornava reféns da sua vontade os adversários mais perigosos. 

Ao longo de décadas a Selecção Nacional tem sido um espaço de vaidades saloias e de frequentes abusos de confiança. 

Em nome do país e com mandato oficial dirigentes desqualificados, treinadores sem personalidade e jogadores oportunistas passaram por inúmeras situações negativas e inadmissíveis, traindo a solidariedade incondicional da maioria dos adeptos e cidadãos. 

Usaram e abusaram da Selecção e muitos até a renegaram quando ela deixou de lhes servir. 

Quando chegou Scolari, recentemente consagrado campeão mundial, era evidente que Portugal há muito precisava de um treinador estrangeiro, o mais distanciado possível das miseráveis lutas de poder que dirigentes associativos e outros figurões há tanto tempo mantinham em torno da equipa nacional. 

Sem ter de recuar a Saltillo ou às guerras de Pedroto, inspirou-se nas porcarias de Queiroz, na tibieza de Artur Jorge, no Ferrari de Humberto Coelho e, claro, no fresquíssimo relatório Boronha sobre as noites de Macau, para eleger Baía como a vítima ideal. 

Scolari é muito esperto, um manipulador de consciências. 

O mais interessante após esta aparição surpreendente é a reacção de alguns franco-atiradores, cuspindo fogo contra o homem que, afinal, era tão fraco, tão fraco, que só tomava decisões polémicas porque tinha bênção superior, directamente emanada do homem mais poderoso. 

Depois de Otto Glória, conduziu Portugal às melhores classificações de sempre, incluindo um 4.° lugar num Mundial que os portugueses ainda não aprenderam a realçar, como se ficasse algo a dever ao J.O de 1966. 

Pinto da Costa muito cedo viu nele uma personagem de outro gabarito e rendeu-se à suprema provação de ficar seis anos à margem do melhor e mais longo período de estabilidade na vida da Selecção. 

Esta força, esta independência, este poder estão de novo sob escrutínio quando a equipa nacional se apruma para mais uma fase final. 

Não há conquistas sem rupturas, sucesso sem riscos, selecção sem injustiçados - o mais importante legado de Scolari, que nos tornou tão indulgentes para as decisões controversas de Paulo Bento.» 

- João Querido Manha, jornal Record, 5 de Junho de 2012

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